Trabalho realizado e apresentado pela psicologa da ABLUDEF, Drª Marivete Gesse no Seminário Internacional Fazendo-Gênero 9, em Florianopólis.
Marivete Gesser (Foto) Adriano Henrique Nuernberg / Maria Juracy Filgueiras Toneli
1 Introdução: Dar visibilidade às experiências relacionadas à vivência da sexualidade de pessoas com deficiência é um ato político, pois possibilita a desnaturalização da ideia de que esse tema não é importante na produção do conhecimento e na atuação profissional nos campos de saúde e educação. Tepper (2000), em seus estudos sobre sexualidade e deficiência, identificou que os temas discutidos publicamente estão predominantemente relacionados ao desvio e ao comportamento inadequado, ao abuso e à vitimização, a assexualização e aos problemas reprodutivos de mulheres e homens, ficando implícito que são ancorados no modelo médico da deficiência. No entanto, a questão do prazer não tem entrado na pauta de discussão.O levantamento realizado junto ao banco de teses e dissertações da Capes por Gesser (2010) indicou que há uma predominância de estudos voltados à reabilitação física e sexual em detrimento de outros voltados à singularidade da experiência da deficiência e suas relações com os determinantes sociais ou com a inclusão social na diversidade. Nesses, a pessoa com deficiência ainda aparece muito mais como objeto de avaliações e intervenções do que como sujeito em sua singularidade e potência de ação. Cabe, portanto, refletir sobre o quanto é preciso avançar no reconhecimento da legítima humanidade desse grupo social, perdida em meio à sua histórica identificação social com o desvio e a patologia.A relevância social de se falar sobre sexualidade e deficiência também é decorrente de a maior parte dos profissionais, inclusive os que trabalham com essa população, não estarem preparados para lidar com as deficiências (e nem com a sexualidade) (SOARES, MOREIRA e MONTEIRO, 2008; SHUM, RODRÍGUEZ e MAYORGA, 2006; MAYS, 2006; NOSEK e HUGHES, 2003; TEPPER, 2000 e THONE, MCCORMICK e CARTY, 1997). Segundo uma pesquisa realizada por Shakespeare e colaboradores (apud SHAKESPEARE, 1998), a falta de habilidade médica em manusear o corpo das pessoas com deficiência traz-lhes um sentimento de vulnerabilidade e de humilhação. Isso contribui para acentuar processos de exclusão social, conforme indicaram Costa (2000) e Dall’Alba (2004).Portanto, destaca-se a necessidade de colocar esse tema na pauta de discussões dos estudos sobre deficiência e de romper com os estereótipos que marginalizam as pessoas com deficiência. Isso porque, de acordo com Shakespeare (1998, p. 204), “o sexo e o amor não têm sido prioridades nem para os estudiosos e nem para os militantes”. A recém aprovada “Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência”, contudo, inova nesse aspecto, ao defender os direitos sexuais e reprodutivos desse grupo social, legitimando a concepção aqui proposta.Todavia, para subverter o modelo dominante de produção de conhecimento e de atuação profissional no que se refere às pessoas com deficiência, faz-se necessário contextualizar alguns dos discursos que estão presentes nele e que explicam a sexualidade de pessoas com deficiência. Estes, conforme apresentado abaixo, trazem implicações diferentes na compreensão desta população e no atendimento em saúde e educação prestado a ela.Um discurso ainda bastante presente na configuração da sexualidade na contemporaneidade é o religioso. Nele, a sexualidade é reduzida ao coito vaginal e entendida como algo que somente as pessoas adultas, em idade reprodutiva e que desejam ter filhos devem fazer. Destarte, impera a suspeita de que os deficientes não conseguiriam reproduzir a espécie, e a sexualidade estaria eminentemente associada a esta capacidade (e não ao desejo e ao prazer). Este discurso apresenta-se como um fator limitante do desenvolvimento dos sujeitos com deficiência (DALL’ALBA, 2004; COSTA, 2000).O discurso médico também está muito presente na contemporaneidade. Este, até por volta do final do século XVIII e início do século XIX, considerava como único modelo de sexualidade normal e saudável o heterossexual que se reproduzia no interior do casal e com o intuito de procriar, caracterizando todas as expressões de sexualidade discrepantes desse modelo como patológicas (o prazer sexual era visto como doença ou enfermidade, em vez do pecado, tornando-se um problema médico), pois as pessoas que as apresentaram foram tratadas inclusive mediante o internamento em manicômios psiquiátricos (FOUCAULT, 1988). Já no início do século XX, a partir dos estudos de Kinsey e Masters e Johnson, o prazer foi instituído como expressão da sexualidade “saudável”. A partir de então, emergiu uma crescente atenção sobre o prazer sexual como ênfase na performance sexual e no orgasmo. A resposta sexual normal deveria culminar no orgasmo para não ser caracterizada como desvio sexual (TEPPER, 2000). Shakespeare (1998) aponta que, a partir deste momento, a sexualidade de pessoas com deficiência passou a ser vista como uma tragédia médica sem precedentes decorrente de sua incapacidade física e, em alguns casos, impregnada de uma preocupação de que genes defeituosos viessem a se reproduzir.Contrapondo o discurso médico, que reduz a pessoa com deficiência ao corpo com lesão, emerge, no final dos anos 70, o modelo social da deficiência. Esse modelo teórico compreende a deficiência como uma construção social, decorrente de condições históricas, materiais e políticas que marginalizam e excluem pessoas com deficiência (SMITH e ANDRESEN, 2004; LANG, 2009). No modelo social da deficiência, a sexualidade é entendida como inexoravelmente relacionada às questões de gênero e à deficiência, sendo que a imbricação destas contribui para a configuração uma experiência de opressão e de vulnerabilidades. Além disso, os autores ancorados neste modelo apontam para a necessidade de se romper com os discursos médicos que, de acordo com Tepper (2000), Shakespeare (1998), e Thorne, McCormick e Carty (1997), consideram a deficiência como uma tragédia médica e a sexualidade como uma dimensão não presente nas pessoas com deficiência.Em decorrência da complexidade que o tema deste artigo apresenta por articular sexualidade e deficiência, fez-se uma aproximação da Psicologia Histórico-Cultural de Vygotski (1998), ancorada epistemologicamente no Materialismo Histórico e Dialético de Karl Marx, com autores como Foucault (1988), Laqueur (2001), Scott (1999) e Nicholson (2000), atualmente caracterizados como alinhados ao pós-estruturalismo. Acredita-se que esses autores, apesar das divergências epistemológicas, podem aproximar-se a partir do olhar histórico de um sujeito que não é o da substância, cartesiano, único, indivisível e da razão, do qual todos fazem crítica. Esse sujeito é histórico e intrinsecamente ligado ao seu grupo cultural e às ferramentas de que dispõe.O presente trabalho teve o objetivo caracterizar as mudanças e permanências ocorridas na forma de as mulheres com deficiência física vivenciarem a sexualidade a partir de sua participação em um grupo de mulheres voltado à problematização de questões relacionadas a gênero e deficiência física.
2 Métodos O presente artigo refere-se a um recorte das informações obtidas na pesquisa de doutorado “Gênero, corpo e sexualidade: processos de significação e suas implicações na constituição de mulheres com deficiência física”. A pesquisa teve como objetivo estudar o processo de constituição de mulheres com deficiência física nas dimensões de gênero, corpo e de sexualidade. Os sujeitos da pesquisa foram oito mulheres com deficiência física vinculadas à ABLUDEF – Associação Blumenauense de Deficientes Físicos – e participantes de um grupo de mulheres da entidade, coordenado por um dos autores, que tem como objetivos: a) problematizar a implicação da existência de um padrão dominante de corpo na constituição da mulher com deficiência; b) propiciar discussões acerca de temas como namoro, sexualidade, família e trabalho, e; c) constituir um espaço de troca das experiências destas mulheres nos diversos âmbitos da vida. Esse grupo surgiu no ano de 2004 a partir das necessidades identificadas junto às mulheres e é uma das ações desenvolvidas na ABLUDEF objetivando a inclusão social das pessoas com deficiência física.As informações foram obtidas por meio de entrevistas em profundidade e observação participante e analisadas a partir da técnica de análise de discurso com base em Vygotski (1998 e 2000). A partir da proposta desse autor, destaca-se a importância de investigar os fenômenos presentes no cotidiano a partir do processo que os constituiu e suas relações com os múltiplos determinantes histórico-culturais. As participantes da pesquisa eram predominantemente de religião católica, tendo idades variando entre 24 e 68 anos, sendo 5 de pele branca e 3 pardas. Três delas eram solteiras, uma viúva, uma divorciada e as demais casadas ou em união estável. No que se refere às lesões, uma possuía luxação congênita, duas paralisia infantil, uma paraplegia, uma amputação do membro inferior esquerdo, um doença de crohn, uma hérnia de disco, ostepfitose e osteoporose e por fim, uma possuía limitações motoras do lado direito do corpo devido a um aneurisma cerebral, artrose e alterações degenerativas na coluna vertebral. Os nomes citados neste artigo são fictícios e foram escolhidos pelas próprias participantes.
3 Resultados e discussão: Neste item, expor-se-á brevemente os principais elementos mediadores do processo de constituição da sexualidade nas mulheres entrevistadas. Em seguida, mostrar-se-á as mudanças (e permanências) na forma de vivenciá-la a partir da participação em um grupo de mulheres voltado à discussão das questões de gênero e sexualidade.Um dos discursos que esteve presente no contexto social no qual as mulheres se constituíram como sujeitos, em maior intensidade nas com mais de quarenta e cinco anos, foi o religioso. Esse contribuiu para que as mulheres tivessem receio de conhecer seus corpos bem como buscar informações sobre o tema. Esta concepção de sexualidade apareceu na fala de Fênix, uma senhora de 49 anos, quando abordou sobre o início de seu namoro com o seu atual marido do qual ela teve relacionamento sexual antes do casamento, engravidou e foi nomeada como “vagabunda” pelos familiares dele “Então eu terminei com uns cinco namoradinhos, porque eles só viam sexo. E eu... eu queria me preserva, né? Ai vim pra Blumenau, conheci ele (risos)... cabô rolando, antes d’eu casar. E o meu sogro chegô: - Ah! Porque tu és uma vagabunda...!” A fala de Mônica, uma senhora de 68 anos que é cadeirante devido as limitações motoras decorrentes da paralisia infantil, ao ser inquirida se já teve vontade de realizar práticas auto-eróticas, também evidenciou a mediação desta concepção, conforme depoimento: “Não! [...] eu queria arrumar um namorado para isso aí, mas não dá. Fazer o que? Tudo é cortado, tudo é cortado [pela família]”.Os depoimentos de Fênix e de Mônica, ambas praticantes da religião católica, evidenciam como os discursos morais e religiosos configuram a relação com o corpo e com a sexualidade. A pesquisa realizada por França e Chaves (2005) com mulheres paraplégicas também evidenciou esse fenômeno. Outro fenômeno que apareceu nas falas das informantes foi o da redução das pessoas com deficiência às necessidades de ordem biológica, impedindo-as de ter relacionamentos afetivos. Essa situação ficou evidente no relato de Mônica: “Porque [a mãe e a irmã acham que] a pessoa deficiente não deve namorar, não deve casar, não deve nada. Tendo a cama e a comida, chega! Não precisa mais nada. Não precisa. O deficiente não precisa mais nada, na cabeça das duas”.A crença de que as pessoas sem deficiência podem se “aproveitar” das que possuem uma deficiência, como também a idéia que as pessoas com deficiência são desprovidas de atrativos e de que uma pessoa sem deficiência só se aproxima delas para obter alguma vantagem foram pontos também identificados no processo de análise dos depoimentos da pesquisa. Outra questão bastante presente referiu-se à idéia de que o corpo dissonante (obeso ou deficiente) é menos atraente do que o corpo não deficiente. Essa é reproduzida principalmente pelos discursos médicos e midiáticos por meio do estabelecimento de um padrão de corpo e definição deste como erótico (FONTES, 2007) e pela contribuição para a configuração da significação de que as pessoas que não correspondem a esse padrão de corpo têm menos valor no “mercado” afetivo e matrimonial.As questões de gênero, por meio do estabelecimento de lugares cristalizados a homens e mulheres, atribuindo à mulher o lugar de frágil, dócil, meiga, dependente e submissa, também estiveram presentes no contexto social no qual as entrevistadas se constituíram e contribuíram para a naturalização de situações de violência sexual vivenciadas por algumas entrevistadas. Nesse bojo, parece operar a lógica da dupla marginalização, sendo gênero e deficiência categorias que se atravessam na produção dos corpos destas mulheres.Outra questão importante refere-se ao discurso médico que reduz a sexualidade a um padrão de resposta único que deve sempre ocorrer nas relações sexuais e que foi apropriado por algumas das participantes da pesquisa. A dor e as limitações de mobilidade decorrentes da deficiência foram elementos presentes na história de algumas entrevistas e mediadores da constituição da sexualidade. A imbricação desses elementos contribuiu para a configuração de uma situação de vulnerabilidade nos relacionamentos sexuais. No entanto, as informações obtidas por meio da pesquisa evidenciaram que não há como estabelecer uma relação causa-efeito, colocando-as na posição de vítimas de uma tragédia sem precedentes. A história da vida sexual das entrevistadas mostrou que a configuração desse processo envolve rupturas e permanências com o que é instituído socialmente a elas sendo que estas foram evidenciadas, por exemplo, na análise da questão do prazer.A questão do prazer evidenciou a processualidade da configuração do fenômeno sexualidade. As informações obtidas na pesquisa evidenciam que, embora as mulheres pensassem as questões relacionadas à sexualidade a partir de um modelo heteronormativo, elas predominantemente explicitaram que sentem desejo e necessidade de ter prazer. Da mesma forma, não compartilharam dos discursos cotidianos que tentaram infantilizá-las e colocá-las em uma posição de assexuadas, buscando relacionamentos afetivos, inclusive com pessoas sem deficiência, questão já identificada nos estudos de autores como Shakespeare (1998). Essa questão foi evidenciada, por exemplo, por Magali, que é deficiente desde a infância e que teve duas experiências de relacionamentos em que tinha relações sexuais (uma que durou dez anos e a outra, três meses). Ela relatou que sentia tão capaz de ter relações sexuais como qualquer outra mulher e que a única diferença era a de que ela não andava. “Por que eu acho assim, o que você tem... eu também tenho a mesma coisa. Só eu não ando né? Entendeu. Por que eu acho assim, eu, no meu ver, no meu sentir, no meu sentimento, eu acho assim, eu sinto vontade, né? Você sabe né?” (Magali).Além disso, nem sempre a sexualidade foi reduzida ao coito e a reprodução, posto que algumas entrevistadas trouxeram, em seus relatos, as múltiplas possibilidades de obtenção de prazer dentro ou fora de um relacionamento conjugal bem como situações em que sentiram desejo de estabelecer relacionamentos sexuais com pessoas que nem sempre eram seus parceiros fixos, o que ratifica o preceito Foucaultiano (1988) de que a sexualidade é polimorfa, cambiante e sem objeto de desejo definido. Segue depoimento que revela esse processo ocorrendo juntamente com a mediação da moralidade cristã:Fênix: (risos). Parece uma coisa de doido, sabe? Um cara veio mora na rua, eu fui na casa dele, na mãe dele, né? Ela é minha amiga. Ele chegou lá assim, deu uma piscada (...) ai! Aí eu tinha uma vontade de ficá ali, sabe? [...] Sabe, se eu pudesse troca na época eu trocava o meu marido. [risos]. Sei que não deve, mas é. Sei que nunca houve assim uma atração por ele tudo bobeirinha, é só... só...Ao longo de suas histórias, em mediação com o grupo de mulheres da ABLUDEF, algumas participantes conseguiram ressignificar a sexualidade, criando novas formas de pensar, sentir e agir no que se refere a essa questão e, por meio desta mudança, sentirem mais prazer. Vale destacar o depoimento de Fênix: “Ah, se eu vou ser franca, eu era mulher que o sexo era só papai e mamãe, né? Agora não, agora vale posições, né? As coisas que eu nunca pensei na minha vida em fazer, né? [...] Porque o sexo entre quatro paredes como diz, faz o que vier na cabeça”.Para Fênix, o sexo pode ser vivenciado de múltiplas formas e de acordo com as possibilidades de cada um evidenciando um processo de transcendência do discurso médico que, de acordo com Shakespeare (1998), reduz o sexo ao coito vaginal, ao ciclo de resposta sexual e a reprodução. Segundo a entrevistada, o coito pênis-vagina não é o mais importante em uma relação e o prazer também pode ser sentido de outras formas, por exemplo, pelo toque. Segue depoimento acerca de quando foi questionada sobre o significado do namoro para ela.Fênix: Eu acho muito lindo. Porque não é a deficiência que vai impedi-lo acerca de [...] se tivé o coito, o sexo [...] ou não [...]. O importante é porque como disse uma pessoa, um toque é [...] é o sexo pra algumas pessoas, né? Não é o coito ou um [...] Ou o gozar ou né? [...] Mas sim a convivência, o amor. [...] Tem o amor de [...] o amor Ágatos [...] e o amor né? Então, tem que tê tudo isso, porque o amor [é] fraterno, né? Então, você tem que amar. Não importa de que maneira. Lá nós temos casais que já vivem juntos há anos, casaram, né?Embora o depoimento de Fênix ainda exalte a idéia de amor fraternal entre os cônjuges, ele é subversivo no sentido de transcender o discurso médico que entende a deficiência como uma tragédia pessoal e o deficiente como assexuado por não responder a um ciclo de resposta sexual padronizado.Outra questão importante de se dar visibilidade é a do namoro como uma oportunidade para experienciar sensações de prazer. Nessa questão, o depoimento de Magali contribui para pensar o quanto é possível a uma pessoa com deficiência ter uma vida sexual ativa e o quanto que isso pode contribuir para que se desnaturalize possíveis situações de violências experienciadas no cotidiano, como a de ser tratada como um objeto cuja finalidade é somente a de o outro obter prazer. O depoimento também mostra o quanto que a experienciação da sexualidade gera oportunidade de ampliar o desenvolvimento nesta questão, sendo potencializadora do sujeito. Vejamos:Magali: É, eu acho assim né? Mais é. É porque ele [ex-marido] fazia, vou fala assim né? Ele fazia, mas não... não chegava onde eu queria entendeu? [...] Então, era só pá pum e deu, né? Acabou né? Só servia pra ele, pra mim nada, né? [...] Magali: Então, eu me sentia assim... Meu Deus! Parece que eu sô um pano de chão, usa vira e vira do lado e deu né? [...] Ai depois que eu arrumei esse namorado. [...] foi muito bom sabe? [...]. Daí eu vi que eu [...] que eu tinha vontade. [...] Eu tinha prazer naquilo, sabe? [...] Que eu pensava que eu não tinha, né? [...] Então, eu pensava [...] não agora sim eu vi que eu... que eu sinto prazer, tenho uma coisa dentro de mim né, um fogo né? Que nem se diz, né? (risos). Um fogo que né... Tanto que, às vezes, eu falo: - Meu Deus do céu! Preciso arruma um namorado senão eu vou enlouquecer. (risos). Os depoimentos de Magali e de Fênix também evidenciaram que é possível superar a idéia relacionada à sexualidade das mulheres com deficiência que, segundo Saxton e Home (apud SHAKESPEARE, 1998) é representada de forma negativa e passiva, sendo comum que elas sejam contempladas em dois extremos: por um lado como dignas de lástima por uma tragédia sem sentido e, por outro, como seres que inspiram sentimentos quase elevados de santidade. Elas também ressignificaram, por meio da participação do grupo de mulheres da ABLUDEF, a concepção predominante identificada na pesquisa de França e Chaves (2005) do discurso das mulheres entrevistadas pelas autoras, de que o prazer serve somente para a reprodução. Magali nunca teve interesse em ter filhos, mas se reconhece como sujeito de desejo e sente necessidade de ter relações sexuais para sentir prazer. Acredita-se que dar visibilidade à erotização e às necessidades sexuais do corpo deficiente é de grande relevância para esse público. Colocar em pauta a questão dos direitos sexuais e reprodutivos às pessoas com deficiência, já garantidos pela Convenção Sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência em seus artigos Art. 6 e Art. 23, se necessário pelo fato de estes, ao contrário do que se pensa no senso comum, não serem neutros e sem desejo. A pesquisa evidenciou que tanto as experiências de namoro como o acesso a informações livres de preconceitos sobre sexualidade potencializam a autonomia e busca de novas sensações de prazer e identificação de possíveis abusos que muitas vezes foram naturalizados por marcadores de gênero. Todavia, é necessário romper tanto com as concepções moral-religiosa e da sexologia tradicional como também com os demais mitos relacionados à sexualidade da pessoa com deficiência como os de que eles são dignos de piedade, não sentem desejo e o de que dificilmente alguém vai se aproximar de alguém com deficiência com outra intenção diferente da de se aproveitar. Além disso, as informações e a socialização das experiências em grupos de reflexão como o Grupo de Mulheres no qual elas participaram contribuíram significativamente para romper com alguns estereótipos relacionados ao tema, embora o contexto continuasse a colocar limites ao exercício dos direitos sexuais e reprodutivos preconizados pela Convenção Sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência.
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